Estórias do Z3D para o seu amigo Chico (esperto)
01 - PERDIDOS NO ALENTEJO
Como
assim? Fechado no Alentejo sem saber por onde sair?
Sim senhor, foi isso mesmo que me aconteceu a mim e à minha
família, há apenas uns 20 anos.
Queres ouvir? Atão cá vai.
Raios.
Fomos a Córdoba e Sevilha e decidimos fazer o caminho de
regresso para dormir-mos já em Portugal. Portanto, ao cair da noite.
Eu conhecia mal tanto a Andaluzia como o Alentejo.
Para evitar despesas em Espanha pensámos sair de Sevilha ao
fim da tarde.
Logo à saída da cidade, grandes painéis na autoestrada a
indicar Portugal. Cento e trinta quilómetros só? É um tiro. Daqui por menos de
duas horas, estamos lá.
Só que Portugal é maior do que eu pensava e na minha lógica,
a fronteira seria a de Vila Real, no Algarve. Mas, quando dou por mim, estava a
seguir a autoestrada que conduzia a Badajoz e nós queria-mos ir para o Algarve.
Nada de problemas. Na próxima saída, saímos e logo devemos encontrar a autoestrada
para Vila Real. Só que não havia outra.
Farto de fazer quilómetros de novo rumo a Sevilha, decidi
sair e encontrar um atalho. Só que não encontrei. Vai daí, há que seguir em
frente. Isto só nos pode conduzir a Portugal. E de facto, assim foi. Os painéis
grandes começaram a ser mais pequenos, a estrada deixou de ser tão larga, os
buracos começaram a sentir-se e, quase sem nos apercebermos, estava-mos em
Portugal. E onde?
Em Serpa, salvo seja. Já era noite adentro. Havia uma bomba
de gasolina, fechada. Havia um restaurante, fechado. Ninguém nas ruas. Nem um
café aberto. Pior, procurámos em todos os sentidos uma placa de sinalização que
nos indicasse o Algarve e nicles. Apenas vimos indicações para Espanha e para
Lisboa.
Tivemos que dormir os quatro na carripana e esperar pela
manhã para vermos gente e perguntarmos para que lado era o Algarve.
Finalmente, por uma estrada
das piores que conheci até hoje, lá chegámos a Vila Real, milagrosamente
02 - ENCONTROS E DESENCONTROS
Devia ser o ano de 1968. Estava-mos morto pelas férias e
elas chegaram finalmente. Na época, tanto eu como a minha mulher era-mos empregados.
Tinha-mos que aproveitar ao máximo aquelas 3 semanas. Na Suíça, as férias são
apenas 3 semanas no verão e 15 dias no Natal e Ano Novo. Ainda hoje é assim.
Tudo estava organizado para partirmos logo naquela
sexta-feira, de
madrugada. Havia muitos quilómetros a fazer, pois eu sempre
tive imensas saudades do mar, e todas as férias tinham que imperativamente ser
passadas à beira-mar. Ora o mar mais perto da Suíça, está a cerca de 900 km, o
mar Mediterrâneo.
Com uma super "station wagon" ampla e confortável,
mal passámos pelas brasas, e por volta das duas da manhã, hop aí vão eles rumo
ao cabo de Agde, em plena Camarga. O objetivo era chegar o mais cedo possível
para "armar a barraca" e descansar, pois ainda não havia a
"Autoroute du Soleil" e no mês de Julho, à medida que descia-mos para
sul, o calor fazia-se sentir cada vez mais. Não consegui fazer os 900 km e
contrariado, tive que encostar, num parque de campismo a uns 200 km de Agde.
Naquela região há imensas coisas belas para ver: 2 imponentes coliseus romanos
em Arles e Nimes, mais as pontes de Avignon, mais isto e mais aquilo, sobretudo
aquilo, que é um excelente vinho tinto, o melhor que bebi até hoje, "O
Lavandou" que é o nome da região.
Mas a região não tem só bom vinho. Também tem um vento de
meter medo que quando começa a soprar, não há tenda que lhe resista. Chama-se
"Mistral" e é muito temido pelas gentes da região.
No campismo (que saudades), fazem-se por vezes amizades
muito interessantes. Assim, mal chegámos e ligámo-nos logo de amizade com um
casal com três filhos, cujo pai trabalha em Paris, no museu do Louvre.
Eles eram uma simpatia e tal como nós, tinham parado ali
para fazer uma etapa, mas o objetivo era Agde à beira-mar. Eles conheciam
melhor do que nós a região e com eles visitámos coisas interessantíssimas. Como
estávamos relativamente perto, decidimos aproveitar o dia e só sairmos no fim
da tarde.
E assim foi. Chegámos a Agde e tanto nós como os franceses, descarregamos
o material e começámos a montar as tendas. A minha era uma tenda estilo
"maisonette". Mas a deles, parecia a tenda do Kadaffi. Tinham um
grande Simca, atafulhado de traquitanas, de mesas, cadeiras, barco de encher,
uma autêntica feira da ladra.
A custo montámos as barraquinhas e as nossas mulherzinhas
deixam-se enfeitiçar por um cheirinho a "bouillabaisse" que é uma
espécie de caldeirada de peixe típica da região, que é de comer e chorar por
mais. E eu vi logo o "Lavandou" a acompanhar aquele acepipe e ainda
por cima sem nos preocuparmos com o regresso a casa. O Restaurante era o do
parque de campismo. Portanto, sem problemas.
O ambiente estava ao rubro, com os miúdos a cair de sono e
os pais (eles e elas) a acusar o efeito dos pimentos, paprikas, tamales e
outros condimentos sob a batuta mestra do "Lavandou". O ambiente era
tão bom lá dentro, que nem demos por alguém que estava cá fora à nossa espera:
o amigo "Mistral", o tal que quando começa não por mais uma semana.
Foi uma noite dos demónios, como eu nunca tinha
experimentado em muitos anos de campismo. Os miúdos choravam baba e ranho e os
pais (e mães), tiveram que adiar os projetos lúdicos para mais tarde. De manhã,
só se via as pessoas a olhar para as suas tendas e a abanar a cabeça, como nós.
O fecho éclair da nossa tenda, nunca mais fechou e as janelas de plástico
transparente, todas rasgadas. Os amigos, além de muitos rasgões, tinham a
armação de alumínio toda torcida. O pior é que todos sabíamos que o vento não
iria abrandar tão depressa. Apenas restava uma solução; levantar ferro.
Sim, mas como desmontar as tendas com tamanha ventania?
Felizmente que uma parte do material ainda continuava numa enorme arca que o
meu amigo transportava com ele, nem sei bem como. A decisão tomada foi de
esvaziar a arca e meter o material a granel para encher espaços nos carros. A
arca foi utilizada para meter a tenda dele, enrolada conforme se conseguiu,
rasgada e com areia. O importante era sair dali para fora da Camarga. Que se
lixe o Mediterrâneo, mais o Mistral e até o Lavandou.
Combinámos atravessar a
França de par em par e irmos em direção ao oeste, direitinhos ao Atlântico. Era
para lá que devíamos ter ido, xiça. Que se lixe, estamos de férias e não é um
palerma como esse "Mistral" que nos vai dar cabo delas, pensámos nós!
- Oh Zé se não te importasses, talvez pudesses levar a minha
arca no teu carro, já que vamos fazer mais de mil quilómetros juntos e os
miúdos assim teriam mais espaço.
- Claro, pega daí que eu pego daqui. E depressa a arca
passou para o meu carro. Outros tarecos mais pequenos, passaram do meu para o
Simca dele, Ele até tinha um porta bagagens montado no tejadilho, onde levava
três ou quatro bicicletas. Tomámos o pequeno-almoço ainda no restaurante do
parque de campismo e mapa aberto em cima da mesa, combinámos que seria ele quem
iria à frente, já que conhecia melhor do que eu a estrada por onde iriamos
seguir. Ele tinha de meter gasolina e eu iria andando muito devagarinho até ele
nos ultrapassar. Pronto, já estás a ver, não estás? Acabei por parar, esperei meia
hora e, como ele não aparecia, voltei atrás à procura de um posto de gasolina,
que não encontrei.
Andámos assim mais de
quinhentos quilómetros, desencontrados, sem números de telefone, sem
Internet, nem mesmo um raio de um satélite para nos indicar o caminho.
Estávamos nós a jantar num
restaurante à beira da estrada, quando o meu amigo Claude e a sua comitiva fazem
uma entrada ruidosa e monumental que nem podes imaginar.
Incrível, nem sequer tinha-mos trocado os
nossos números de telefones de casa!
Tudo acabou bem, mas podes
imaginar o dia que foi, para eles e para nós. INESQUECÍVEL!
Esta, nem o Ian Fleming para o 007, nem o Hergé para o Tintin, poderiam ter
imaginado. Só um espírito a transbordar de imaginação maquiavélica, o poderia
ter concebido.
E é isso mesmo que ele é, uma fonte inesgotável de
imaginação, quando se trata de pregar alguma partida a alguém.
Falo do meu grande e velho
amigo Quim Tavares, que apesar dos seus 84 anos está são como um pero e sempre
pronto para mais uma partida das dele, sempre originais e "de esticar o
pernil a rir". (A censura proíbe falar de morte).
Eramos colegas das artes
gráficas desde os anos 70. Ele tinha uma empresa de encadernação industrial,
mas era procurado por diretores de museus e conservadores de bibliotecas,
sempre que era preciso restaurar uma obre de arte literária antiga de valor
inestimável. Quando se tratava de pergaminhos antigos e até relicários
religiosos em que era necessário o saber e o talento de um mestre encadernador,
vinham ao Tavares, que tinha sempre o papel certo, o pergaminho certo, o couro
certo e sobretudo as mãozinhas certas. Era um dos maiores encadernadores
artesanais da Suíça e foi discípulo do Bretcher, o maior e mais conceituado da
Suíça.
Eu tinha uma empresa totalmente diferente, embora também no
ramo das artes gráficas e trabalhava-mos muitas vezes em conjunto, sempre que
eu tinha uma encomenda que exigia maquinaria da pesada para os acabamentos,
como dobras complicadas, capas de livros, coser cadernos para formar livros,
etc.
Ele mandava-me clientes
sempre que era preciso criar fotograficamente ou graficamente, imprimir, etc.
Completávamo-nos perfeitamente.
Explorávamos também um
negócio de compra e venda de máquinas gráficas, tanto para o ramo dele como
para o meu. Comprávamos na Suíça e por ali à volta, máquinas e equipamentos,
que depois eram vendidos aqui em Portugal. Para a Majora, no Porto, foram
algumas máquinas e em particular, uma que exigiu que fossem de Portugal dois
mecânicos especializados, com um camião-grua para transportar a máquina
parcialmente desmontada e voltar a montá-la na Majora.
Estas atividades e outras
relacionadas com as nossas profissões, faziam de nós uma excelente equipa, que
durou muitos anos.
Inútil será dizer que
andava-mos sempre na boa- vai -ela, pois havia sempre algo a visitar, ora em
Milão ora em Düsseldorf.
O Quim, na época era todo comuna, sem nunca o confessar.
Pudera! Um comuna capitalista? Mas, para fazer o gostinho ao dedo, lá me
convenceu a ir até à ex-Jugoslávia passar 3 semanas de férias. Só peripécias, e
das boas.
Não fizemos a viagem juntos. Ele foi à frente, uma semana
antes, a desbravar caminho. É que ele queria ir à fina força, até à Albânia,
onde o comunismo era quase mais negro do que o da própria União Soviética.
Queria ir lá passar uns dias, só que, não o deixaram entrar para desgosto dele
e deleite da mulher, Suíça-Alemã, alérgica como eu às parvoíces comunistas.
Assim e como estava
combinado, eu iria encontrar-me com eles em Rieka, a primeira grande cidade
Jugoslava e seguir à fronteira com a Áustria.
Uma semana depois deles, chegou o Zé com a sua comitiva,
mulher filha e mãe, que estava lá de férias. À chegada ao camping, estava a
tribo Quim Tata em peso à nossa espera.
Foi festa rija, já se vê. O ambiente é que não nos agradou
muito. Raios, ali longe da Alemanha, em país comunista, só se ouvia berrar
miúdos em alemão. Mais os pais e as mães com aquelas vozes de quem quer posso e
mando a chamarem pelos filhos, o que nos enervava profundamente. Então nós
fomos tão longe para fugir daqueles alemães que encontrávamos em todos os
parques de campismo na Suíça, na França, e nem aqui nos deixam em paz? À noite,
queríamos ir beber um café e lá estavam o raio dos alemães a cantar como se só
ali estivessem eles. E vai daí, agarram-se uns aos outros e todos juntos,
balançam-se para a esquerda e para a direita e sempre aquele barulho de fundo
tipicamente alemão. Parecia quando no café do filme Casablanca os alemães
desatam a cantar aquele hino patriótico que tanto enervava os franceses.
Filhos da puta isto parece mesmo que é deles. Imagina, se
estes sacanas têm ganho a guerra!
- Deixa Zé, eles amanhã vão pagar isto bem caro, ah isso
posso te garantir.
O Quim diz aquilo tão
seriamente, que eu fico logo a pensar: o que será que este parvo irá fazer aos
alemães? Conhecendo o bicho, sabia que ele já estava a premeditar alguma, e boa
como sempre. Só que ele não diz o que pensa fazer e eu já estou a ver o Quim de
cú para o ar, enquanto os alemães se torram ao sol na praia, a arrancar as
estacas que prendem os esticadores das tendas à espera de ver as barracas
desabar.
No dia seguinte, a nossa malta e a dele, querem mesmo
aproveitar o sol e o mar e põem-se todos na alheta. Que bom para o Quim. Praia?
Qual praia qual carapuça. Ele quer é vingança. Por mais que eu insista a ficar
com ele no campismo, nada a fazer. Ele quer mesmo ficar só. Também fui com a
malta, não sem lhe dizer: - ó Quim, vê lá no que te metes, que nós aqui não
estamos na Suíça.
- És palerma ou quê? Pensas
que eu sou parvo? Aqui levava uma tareia das grandes. Aquilo de ontem era a
brincar.
E o dia de praia chegou ao fim. Quando regressamos ao
camping, o Quim agarra-me por um braço e diz: - se queres rir, anda daí.
E levou-me para um banco a uns 20 ou 30 metros, mesmo em
frente das cagadeiras (como ele lhes chamava). Espera, que o circo vai começar.
É só uma questão de tempo.
As cagadeiras, eram quatro cabines meio toscas, duas para as
mulheres, duas para os homens.
O Quim, já ri que nem um desalmado e enquanto eu já começo a
pensar que ele está é a gozar comigo o que era bastante habitual nele. Insiste
para eu ficar mais um bocado, pois que vou ser bem recompensado. E fui.
E a risada deu lugar a um ar de circunstância, mais grave.
É que vem ali um alemão em fato de treino, acabadinho de chegar
da praia e pela pressa que leva, tudo indica que vai arrear o calhau. E foi.
Leva tempo o sacana. Provavelmente está de caganeira.
Uns minutos depois, sai ele ainda mais vermelho do que
quando entrou e lá vai a caminho da barraca dele, todo gingão, a abanar o cú
para a esquerda e para a direita e nós a segui-lo à distância, até que o pobre
não aguenta mais e leva o resto do trajeto com os dedos enfiados entre as nádegas,
a coçar o cú que nem um desalmado.
E o espetáculo continua. E lá vem a sair mais uma daquelas
barriganas vermelhinhas como tomates maduros, também com os dedos enfiados no
cú e coça daqui, e coça dali, e nós a gozarmos e a rir que nem uns perdidos,
pois o espetáculo era hilariante. E durou, durou...
Até que a comédia se tornou drama e acabou com a
brincadeira.
Um miúdo com os seus oito anos, chegou a correr pois estava
mesmo à rasquinha, entra na casinha e de repente começa aos berros lá dentro,
em alemão "O Mutter- Verbrennungen meinen Arsch". Mais ou menos,
isto: - Ó mãe, arde-me o cú.
Outros alemães que por ali
andavam ouviram o miúdo fechado lá dentro e coitado sem sequer ser capaz de
abrir a porta, acabaram por forçar a tranqueta e lá tiraram o puto que berrava
como um porco a ser degolado!
Foi então quando o Quim, com um ar triunfante de quem venceu
a Alemanha, me conta como preparou a marosca.
Como já te disse, a tenda
dele era enorme. Ele desenrolou um rolo de papel higiénico, estendeu-o no chão
e pulverizou-o com um spray de laca que a mulher usava para o cabelo. Pegou no
pimenteiro com pimenta branca para não dar nas vistas e polvilhou generosamente
o papel, sem olhar a despesas. Mas, que lado do papel iriam servir os alemães?
Bom, se não fosse um lado, seria o outro. Os cús alemães, só são maiores do que
os outros. Não diferentes. Vai daí, temperou o papel dos dois lados. Como era
verão, dentro da tenda era uma autêntica estufa. Em poucos minutos o papel
estava pronto a ser consumido!
Pena foi ele ter preparado só um rolo de papel. Também
gostava de ter visto as alemãs a coçarem a rata!
04 - A PEIXEIRA DO BULHAO
Parece que gostaste mesmo da do papel higiénico. Também não
pareces gostar muito dos alemães. Talvez gostes mais das alemãs! Essas, foram
poupadas. O Quim também é mais contra eles do que contra elas!
Mas se tivessem sido elas,
aposto que também gostarias de lá ter estado e, provavelmente até te tinhas
apresentado como bombeiro voluntário!
Está descansado que o vais conhecer se ele cá voltar. Eu
próprio zelarei por isso.
Mas entretanto, vou-te contando algumas das dele por
escrito, pois quando o ouvires contar a ele, instala-se um clima de gargalhada,
que ninguém percebe nada do que ele diz. Ainda por cima ele é do Porto, e do
melhor sítio para se falar mal, a região da Afurada, com o nome pomposo de
Vilar do Paraíso.
Tem dois irmãos que também vivem na Suíça há alguns
cinquenta anos como ele. A primeira mulher dele também era do Porto. Imagina só
a linguagem lá em casa!
Conheço a atual mulher dele, que era uma miúda quando
casaram. Fui ao casamento deles que teve uma festa de arromba. Tal como no meu casamento,
havia mais músicos no palco, do que gente a dançar. Todos os elementos que
formavam a orquestra, eram nossos amigos. Um grande amigo nosso que tocava
banjo ao estilo do Mississípi, a minha ex-mulher à guitarra clássica e eu ao
acordeão, formámos "O Trio Maravilha". Que tempos!
A Margrith, a mulher dele, não sabia praticamente nada de
francês. É mesmo Suíça-Alemã de gema e na época, para além do
"Shnifferschnaff" que é o nome que os suíços-franceses dão aquela
miscelânea de língua, não falava mais nada. Imagina a pobre a viver com aquela
fauna portuense, o que teve que aprender. Se queres rir, esta ilustra tudo.
O Quim vem a Portugal todo orgulhoso mostrar a sua jovem
mulher à família. Vão ao mercado e o Quim vai explicando à jovem o que vão
vendo, em francês. Ela lá vai percebendo. Vê na banca de uma peixeira, um
"belíssimo" tamboril e pergunta ao marido como se chama. O Quim que
já não se lembra ou nunca soube, pergunta à peixeira o nome do peixe e tenta
traduzir à mulher, só que se não conhecia o tamboril em português, imagina em
francês.
A peixeira são só sorrisos e espera que a senhora se
interesse pelo peixe.
A Margrith faz uso dos seus conhecimentos da língua
portuguesa e pergunta:- quanto custa? A peixeira diz-lhe o preço e a Margrith
abre os olhos esbugalhados e com uma expressão muito natural, diz:
- Foda-se está caro!
A peixeira fica boquiaberta, perplexa e passada a surpresa,
volta-se para as colegas e diz:- Olha o caralho da mulher. Foda-se? Foda-se
ela. E eu a pensar que ela era uma madama!
05 - O MISTÉRIO DO PEIXE VOADOR
Claro que te lembras. Quem os pode esquecer? Eu fui tão
fascinado por eles, que tenho a filmografia quase completa deles. Outras
épocas! Ainda bem que eles existiram e tenho esses filmes que já vi vezes sem
conta, para de vez em quando fazer uma limpeza de toda a porcaria que o cinema
e a TV de hoje nos impingem.
Tive a sorte de partilhar
muitas das hilariantes aventuras do meu velho amigo Quim Tatá, que apesar da
idade bastante avançada, ainda cá está entre nós. Se ele for lá para cima antes
de mim, vou ter um grande desgosto, podes mesmo crer. O meu sentimento de
amizade e respeito por ele, só tem paralelo no que ele sente por mim.
Mas também ficam registos desta amizade, sempre pigmentada
com aventuras rocambolescas, em dois livros que ele escreveu.
Tenho o privilégio de ser uma das personagens mais citadas por ele, tanto a
nível profissional como familiar. Ele conhece quase toda a minha vida passada
na Suíça e mesmo em Portugal, depois do meu regresso. Nem a Linda escapa nas
suas narrativas. Ele gosta muito dela e ela adora quando eles cá vêm. É que
quando ele cá vem, deixa sempre a assinatura atestando a sua passagem, com
alguma partida que prega a alguém.
Um destes dias vou
contar-te uma que ele pregou cá em Portugal à Câmara Municipal de Vila de Rei,
testemunhada por mim, pela Linda e pela Susana. Esta é de "definhar a
rir"! (Sempre a tal censura que proíbe falar de morte).
O Quim em pesca, é tão entendido como o Zé António em
campismo.
Na Suíça, ele teve a
ocasião de ir um dia comigo à pesca. Eu tinha um belo barco de recreio que
também servia para a pesca e isto por todos os tempos, quer nevasse ou caísse
neve.
Na véspera, tinha-mos estado a ver o filme de Hitchcock
"Os Pássaros", em casa do Quim.
As miúdas, a minha e as dele, estavam arrepiadas com o
"suspense" do filme e como havia ambiente, ninguém tinha pressa para
ir para a choina. A noite avança, e o Zé diz:- Bem, são duas da manhã e eu
tinha previsto ir à pesca amanhã. Quero ver se durmo um bocado, pois eu gosto
de sair do porto ainda antes do sol nascer.
- O quê? Tu és maluco. Está um gelo e tu queres ir para o
meio do lago armado em parvo?
- Parvo? O meu barco tem todo o conforto, meu palerma. Tem
cabine aquecida. Basta levar uma garrafa térmica com uma sopinha bem quentinha
e outra com café, um frasquinho com "aquecimento" e mainada!
- O tipo é mesmo maluco.
Ele vai para a pesca com este tempo? Estás a brincar. Só vendo!
Entretanto, a malta dele já roncava. A minha, deserta que eu
as fosse pôr em casa, pois sabiam que eu era mesmo um "doente" da
pesca e ia mesmo pescar. Num ímpeto, o Quim levanta-se e diz:- também vou! E
foi.
A pobre da mulher dele lá tem que fazer a tal sopita
enquanto a minha fazia o tal cafezito e ele se ocupava do tal
"aquecimento"!
E aí vão eles que nem dois
heróis, prontos a enfrentar os perigos do largo!
Chegamos ao porto, bem antes de o sol nascer. Estava tudo
branquinho e pairava um manto de nevoeiro, baixo, que dava ao local um ar
sinistro, estilo filme de terror na Transilvânia com o Drácula a rondar por
ali.
Dada a hora, por volta das cinco da manhã e por ser Domingo,
o silêncio era de cortar à faca. Apenas se ouvia de tempos em tempos um grito
estridente lançado por uma gaivota. E isso chamava-nos a atenção para as
gaivotas. Os beirais e os tetos daquelas instalações portuárias, estavam
apinhados de milhares de gaivotas, num cenário que parecia irreal devido ao
nevoeiro. Raios, aquilo parecia mesmo uma continuação do filme. Será que também
ia-mos ser atacados pelas gaivotas? Pelo sim pelo não, vamos dar o pira daqui.
Tudo isto na brincadeira, claro. Coitadas das gaivotas, todos os dias lá
estavam. Nós é que não. Ainda menos o Quim, para quem toda esta atividade era
mistério.
Enquanto eu ia preparando o barco e os tarecos da pesca, o Quim ia cuidando do
aquecimento, no próprio e no figurado. A cabine ia estando mais temperada e o
motor devido ao gelo, também tinha que estar uns cinco minutos a aquecer,
devagarinho, para não incomodar as pessoas que dormem. Malucos sim, mas
respeitadores do repouso dos outros!
A cabine já está mais quentinha e o meu Quim não sai de lá.
É o sais!
O comandante não tem problemas nem precisa da equipagem para
nada. Tirar o barco dali, não tem segredos para ele e não é tão parvo como o
outro do "Costa Concórdia"!
Para além disso, o Zé não está só. Está lá o Quim. Bem
protegido no interior da cabine, mas está lá!
Cá fora, o ambiente é diferente. O comandante bem camuflado
com botas forradas a pele de carneiro, luvas do mesmo calibre e gorro estilo
passa-montanhas dos aviadores da segunda guerra mundial, não teme o frio. E
enquanto o motor vai ronronando como um gatinho, o comandante sempre agarrado à
balaustrada para não escorregar no gelo que cobre tudo quanto é barco, consegue
desprender as quatro correntes que mantêm o barco entre dois varais de ferro,
que o impedem de roçar nos outros.
Ao passar de novo diante da janela da cabine, faz sinal ao
Quim de que tudo está ok, aparelhado, pronto para a largada. Sempre com o motor
no mínimo regime possível, o comandante mete a "marche-avant",
acelera um nadinha e...nada. Raio do barco, não se mexe. E esta?
Nada de pânico. O comandante, como homem avisado que é, não
entra em pânico. Ele sabe que aquilo pode acontecer e serena a tripulação que
já começa a pensar que a pesca acaba ali. Tal um velho "lobo do
lago", o comandante para o motor e confiante na sua experiência, só não
arregaça as mangas porque... porra, quem é que o faria?
Depois de algum esforço, levanta a coluna do motor e pensa
ter encontrado a causa da imobilidade do barco. Todos os motores navais, estão
munidos de uma peça em latão que se chama "goupie" e que tem por
missão manter a hélice engatada, mas que parte, sempre que a hélice é imobilizada
por algo como algas, redes, cordas etc., para evitar que a travagem brusca
provoque danos graves no próprio motor. Mas não era isso. A "goupie"
estava intacta e a hélice funcionava normalmente.
Meio a rir meio a brincar, digo:- Olha Quim, tens que sair e
empurrar. E claro, rimos, com um sorriso meio amarelo, mas rimos. Entretanto,
eu estava mesmo a precisar de um pouco de aquecimento e entro para a cabine,
onde o "aquecimento" do Quim fez maravilhas. Entretanto, o sol começa
a mandar um pouco de luz e através dos vidros embaciados fez-se luz sobre o
mistério da "pane". O porto tinha gelado e o pobre do barco coitado,
patinava no gelo e ficou prisioneiro, bem aconchegado naquele sítio, com um
congelamento feito por medida: à medida dele!
Mas seria preciso muito mais para travar aqueles
aventureiros de antes partir que torcer! E vai daí, partimos mesmo. Não do
porto, mas o gelo para podermos sair!
E o meu Quim, lá teve que deixar o casulo agora já bem
quentinho, para se colocar deitado de cú para o ar na proa do barco, enquanto ia
partindo o gelo com um remo.
Assim, tal como um quebra-gelos no norte do Alasca, o
“Romeu” (nome do barco), lá ganhou o largo. Chiça penico. O gelo era duro, mas
não tanto como nós. Acabou a história? Qual quê, o melhor vai ser agora.
O lago apesar de pequeno,
sempre tem 50 km de comprimento. Claro que havia nevoeiro, mas nada de
intimidar dois descendentes de Vasco da Gama como nós. Enquanto houver
combustível no depósito e na garrafa do Quim, a pesca continua. Nem que
tenhamos de pendurar as cuecas no mastro a servir de vela!
Em princípio, estava
previsto nunca nos afastarmos de forma a perdermos de vista a margem de onde
saímos, já que a outra estava a cinquenta quilómetros. Com nevoeiro, é preciso
ter muito cuidado, pois nem o sol nem a sombra nos podem servir de orientação.
Tudo é branco. Só a bússola te pode ajudar, mas ela apenas te indica uma direção,
não as distâncias.
De repente e já com as linhas na água e depois de o Quim
estar mesmo em ponto de rebuçado com o entusiasmo da pesca, o sacana do São
Pedro em vez de nos ajudar por também ser-mos da mesma congregação que ele,
fecha-nos o cortinado e nós deixamos de ver a margem. Grande porra. A bússola
agora ainda pode ajudar, pois eu sabia bem utilizá-la e conhecia as coordenadas
para encontrar o porto. Só que aqui, houve vários fatores que militaram contra
nós, para além do Pedro que para mim deixou de ser santo. Puta que o pariu!
Primeiro, o entusiasmo da pesca. É que aquilo estava mesmo a
dar truta a sério e o Quim já tinha ajudado a trazer para o barco uma trutinha
de quase quatro quilos! Mais umas outras dez ou onze. Quem é que ia abandonar
aquilo?
E mesmo querendo abandonar,
havia outro problema. É que as linhas de pesca têm cem metros de comprimento e
para que elas não se emaranhem umas nas outras, o barco tem que ir sempre em
andamento, a uma velocidade de cerca de seis ou sete km/hora. O tempo de
recolher as linhas de cem metros, não é muito. Mas quando o lago está calmo
como naquele dia, pode-se pescar com oito ou dez linhas. Quando acabas de
recuperar todas as linhas, o barco já está em cascos de rolha.
Não fazia-mos ideia em que parte do lago estava-mos e eu
apesar de ir brincando para não assustar o Quim, não estava nada descansado.
Sabia que era Domingo e por isso não haveria barcas de transportes de materiais
que quando passam, passam mesmo, mas havia barcos de carreira, que são
prioritários e não abrandam por um barquito de recreio. Eles têm horários e
quem tem que ter cuidado são os navegadores de recreio, como nós.
Claro que quando está assim
um nevoeiro cerrado como aquele, eles apitam. Mas se o apito soar perto de nós ao
mesmo tempo que ouves o barulho das máquinas a aproximarem-se, juro-te que
acagaça qualquer valente. Mesmo um Henriques!
Naquele dia, não houve desses sustos. Mas a manhã estava no
fim, era preciso regressar e já tínhamos trutas a dar com um pau. Toca a
enrolar as linhas, cada uma na sua bobine, o Quim de um lado do barco, eu do
outro.
O nevoeiro começa a levantar e conseguimos vislumbrar a
margem. Que bom. Não a podemos perder de vista. -"Quim enrola isso
depressa para nos pirar-mos enquanto vejo a margem".
E o pobre do Quim, que nunca tinha enrolado uma linha de
pesca, leva mesmo muito tempo e está sempre a dizer: "aqui há peixe" isto
está pesado, pá. Cada vez pesa mais.
E o veterano vai rindo e sempre com um olho na margem que
ora aparecia ora desaparecia, goza que nem um perdido, pois o Quim tem ar de
quem fala a sério.
-Já viste a quantidade de chumbo que a linha tem para ir mais
ao fundo? Deves ter aí um peixe-chumbo! E o Zé continua a gozar com o
Quim. Porque não, para um gozão daqueles, gozão e meio!
Eu bem sabia que aquela, que era a última linha, não levava
chumbo nenhum, precisamente para não descer mais do que a superfície da água,
de modo a permanecer à tona enquanto outras desciam a oito metros de
profundidade. Nunca se sabe a que profundidade está o peixe.
E o Quim: - mas esta porra está mesmo pesada. Anda cá ver.
E o Zé deixa o seu posto de vigia e pelo sim pelo não, pega
na linha do Quim. Raios, isto está mesmo pesado, lá isso está. Mas como é uma
linha de superfície, deve ter apanhado algo, talvez ervas. Vai enrolando, Quim,
vai enrolando. De Qualquer forma só saberemos o que é, quando tivermos o
peixe-isco na mão.
Aqui, convém abrir um
parêntesis para te explicar o que é o peixe-isco. Trata-se de um peixe
artificial em geral de plástico, que certamente já tens visto em artigos de
pesca. Mas para a pesca à truta no lago, o tal isco é uma peça esguia como um
peixe, talhada em "nacre" (madre pérola). O peixe-isco vai preso na
ponta da linha, com um anzol triplo. Com o movimento permanente do barco a
navegar a uns seis/sete km/h, o isco descreve um movimento giratório sobre si
próprio, que dá a ilusão de ser um peixe a nadar em superfície. Para a truta
que caça sempre alvos em movimento, aquilo é um acepipe do caraças.
Irresistível. A truta só come caça viva.
Ora tudo isto se passa a cem metros do barco e com aquele
nevoeiro, impossível saber o que é. E o Quim, muito devagarinho, vai enrolando.
E de repente; - Zé anda cá depressa há mesmo peixe no anzol, isto dá cada
esticão!
E lá vai o mestre, incrédulo, pega na linha e, porra que ele
tem razão. E aquilo é peixão dos grandes. Esta não é uma de quatro quilos. É
muito maior.
E o Zé sonha. Parece "O Velho e o Mar" ao vivo. Já
me tinham dito que havia trutas no lago com nove quilos, mas eu nunca tinha
visto nenhuma. Aquele ia ser o meu dia. Já me tinham chamado algumas vezes para
eu ir fotografar colegas que apanhavam presas fora do comum. Uma vez, foi um
lúcio de catorze quilos. Outra vez, foi um peixe-gato de oitenta e quatro
quilos. Desta vez seria eu e a minha presa que iria brilhar no jornal local.
Mas o que raio poderia ser aquilo? E ao meu lado já estava
outra vez o Quim de cú para o ar de camaroeiro na mão, para tal como já tinha
feito antes, sacar a truta assim que ela se aproximasse do barco. Os nervos
estavam ao rubro. O coração batia desalmadamente e por uns momentos, até
perdemos o norte e a margem de vista. Que se lixe a margem. O nevoeiro acabará
por levantar. O que interessa agora é que temos peixe e do grosso. Este, não o
podemos perder. E o Zé que já nem tem frio, até descalçou as luvas para melhor
sentir o fio. E os puxões eram cada vez maiores. E os olhos sempre fixos
naquilo que deveria ser a extremidade da linha. Só que a cem metros, o nevoeiro
não deixava ver nada.
E os esticões são cada vez maiores. Há que usar a ciência e
nem sempre puxar. Quando os puxões são maiores, é preciso dar folga à linha,
não vá a truta desprender-se, ou pior, partir a linha e fugir com o isco. (Um
peixe-isco em nacre, custava doze francos).
Este episódio deve ter durado mais de uma hora e eu já não
sabia o que fazer. Apenas esperar que a truta se cansasse e se deixasse vir sem
dar luta. Pelo menos ela estava lá e devia estar bem presa.
Entretanto, por uma nesga aberta no nevoeiro, brilha um
raiozinho de sol que nos mostra tudo, menos o que nós queríamos ver.
É que o raio da linha, só mergulha na água, uns metros.
Depois, levanta voo e some-se no nevoeiro. E esta? Um peixe-voador?
Bem, agora tinha passado o entusiasmo da truta gigante. Mas
ficou o mistério. Terá sido o São Pedro que agarrou o peixe-isco por vingança?
Eu blasfemei contra ele…
Só resta uma coisa a fazer, continuar a puxar. Pelo menos
sabia-mos que truta, não era.
Foi então, quando já só faltavam uns vinte ou trinta metros
de linha, que ficámos de boca aberta. Uma pobre e grande gaivota, tinha sido
seduzida por tão apetitoso pitéu, mergulhou e ficou presa pelo bico.
Quis ser um bom samaritano
e lixei-me. Não é que o raio da gaivota enquanto eu tentava libertá-la do
anzol, não parava de me bicar a cara? Como no filme!
6 - VISITA AO CENTRO
GEODÉSICO DE PORTUGAL
O Quim e a sua Margrith, adoram viajar. Hoje em avião, mas
ainda há bem pouco tempo vinham algumas vezes por ano a Portugal, a bordo de
uma excelente autocaravana. No caminho, dormiam sempre em parque de campismo,
por se sentirem mais confortáveis e em maior segurança.
Não por uma questão de economia, mas porque o tal vírus do
campismo vinha ao de cima e o chamamento da liberdade na natureza, era mais
forte do que os hotéis. Portanto, esta história ainda se enquadra no espírito
das aventuras campistas. Vamos a ela.
Uma noite ao jantar, diz o Quim. Vocês não conhecem o Centro
Geodésico de Portugal?
Para mim, isso é chinês. Na minha ignorância em relação a
ele e a Portugal, nunca sequer tinha ouvido falar nisso. O termo
"Geodesia", sempre que me dizia qualquer coisa, mas sem saber o que
era na realidade.
O Quim, que é uma verdadeira enciclopédia e que tem uma
memória extraordinária, não aceita que eu desconheça o Centro Geodésico de
Portugal. Espantado com a minha ignorância, diz:- Essa agora, então tu sabes e
gostas tanto de falar de geografia e não sabes o que isso é?
Inútil dizer que mais
ninguém sabia patavina sobre uma palavra tão pouco usual e complicada. Amanhã,
vamos lá! Diz o Quim.
E quando o Quim diz algo, está dito. Não há mais nada a
fazer. Ditadores como este já não se fazem. O último deve ter sido o Estaline!
E o Zé para a Linda: Xiça, que o homem é mesmo ditador a
sério. Está em nossa casa de visita, mas quem manda é ele. Amanhã, vamos lá,
diz ele. E nós como cordeirinhos lá vamos atrás dele.
A Linda coitada, sempre apaziguadora e conciliadora porque
também gosta deles, aceita todas as extravagâncias do mandão que, lá porque
também é suíço, pensa que manda em todos. Que sacana de teimosão me havia de sair
na rifa. Ainda por cima não me está a apetecer nada, andar em Lisboa a
perguntar aqui e ali onde é o Centro Geodésico ou lá o que é.
E a Linda, sempre a querer
acalmar os espíritos:- Mas ele diz que já lá esteve.
Grande Gildo, já estás a
topar. O parvo do Zé, pensa que lá porque conhece bem Lisboa vai ter que andar
com uma autocaravana no meio de um trânsito infernal, à procura do que ele nem
sabe bem o que é, o tal Centro. O grande nabo está a imaginar que se trata de
algo no género do Centro Cultural de Belém ou algo no género!
O sacana do rato do Quim,
matreiro que nem uma raposa velha, topou logo que o Zé ignorante ia cair que
nem um patinho. E caiu!
Na manhã seguinte, toca a
alvorada e com tudo a postos, diz o Quim: -Conduzes tu, que eu já tenho a minha
dose. O Quim pega no mapa e só aí me apercebo que o tal centro, não é o que eu
pensava.
Até aqui, esta já dá para
rir, e à grande. Como diz o Gildo, é importante saber-mos rir de nós próprios.
E acredita que nós rimos todos com abundância incluindo eu. Boa, mesmo à Quim!
Então o Quim explica que temos que andar uns quilómetros,
pois o tal "Centro", é mesmo o centro de Portugal, a igual distância
do Norte e do Sul, como do Leste e do Oeste.
Mais explica, que aquilo é muito bonito e que tem um
panorama único em que por tempo claro, se avistam todos os grandes relevos de
Portugal. Vale mesmo a pena irmos lá. E aí vamos nós para aquilo que ia ser a
segunda parte desta história, que em princípio ficaria por aqui.
Seria minimizar o facto de
o "Quim Tatá" ir connosco. E quando ele vai, algo vai acontecer para
nos fazer partir o coco a rir. Saboreia.
Depois de muitas curvas e contracurvas, lá chegámos a
Vila-de-Rei, bem no coração do Alto Alentejo. Subimos até ao topo do monte que
se chama "O Picoto da Melriça" e tudo era de facto como ele tinha
dito. Fantástico. Ali percebi bem o significado do sítio. Lá estava a pirâmide
geodésica a indicar o centro exato de Portugal.
Fotos daqui, fotos dali e diz o Quim:- isto agora tem aqui
instalações que ainda não tinha quando cá vim. Que disparate de construção mais
inapropriada a um sítio destes. Devia ser proibido construir aqui.
Ainda por cima, a construção é bizarra. Três ou quatro
mastros com grandes bandeiras a flutuar ao vento que ali nunca deve faltar,
aquilo parece mais um bar que outra coisa qualquer. Mas está lá escrito e em
letras bem grandes, "Museu da Geodesia". Boa! Temos que ir ver isto.
E o Zé, indignado: - Pois, esquecemo-nos que estamos em
Portugal, claro. Isto na Suíça nunca aconteceria! E o Quim: - E aqui também
não.
Queres ver? E o Quim
saca do telefone e compõe o número que lá estava marcado no horário. Era o
número do pelouro Cultural da Câmara Municipal de Vila de Rei. O Zé, surdo que
nem uma porta em dias de ventania, vê aquela malta a rir, a rir, e claro que
não faz ideia do que se passa, até que a Linda que se deve ter mijado a rir,
entre gargalhadas e entupimentos de garganta, com lágrimas à mistura de tanto
rir, me diz: -
Sabes o que é que o Quim
está a dizer aos da Câmara?
- Então? Isto é mesmo à
portuguesa, não é? O estado gasta um dinheirão que saiu dos nossos bolsos para
construírem um museu da geodesia neste sítio histórico tão badalado por vós
para promoverem o turismo regional e o resultado é este? Organizamos uma
excursão de crianças das escolas de Peniche para visitarmos o museu e batemos
com o nariz na porta? Temos aqui um autocarro com cinquenta crianças e
encontramos o museu fechado sem qualquer aviso? Isto não passa assim. Se dentro
de um quarto de hora não estiver aqui ninguém da Câmara para justificar este
ato, vão ter notícias minhas, pois o ministro há-de ser informado. Tenho dito.
Claro que não havia mais ninguém para além de nós. E um
quarto de hora, passa depressa. Não convinha estar ali quando os outros chegassem,
(se viessem, pois o Quim não tinha esperado pela resposta deles)
Eu entro na autocaravana,
ponho o motor a trabalhar, pronto para arrancar. E diz o Quim muito sério: - Mas
o que é isto? Vamos a fugir de quê? Não tenho medo deles. E se eles não vierem,
volto a telefonar. Daqui, não arranco. Quero ver o museu!
os senhores estão à espera para visitar o museu? O Quim
avança logo para fazer frente ao homem, - que coitado, vê-se logo que tinha
sido alguém mandado à pressa para abrir a porta e evitar problemas - e com aquele
sentido teatral que só ele sabe representar, diz: - Museu? Qual museu? O quê,
isto é um museu? Olha, nem tinha-mos reparado. Pode-se visitar? Claro que pode.
Entrem e tomem qualquer coisa. Isto também é um bar.
O homenzito, agora mais confiante e calmo, lança
timidamente: - Os senhores já estavam aqui há muito tempo? Não, tinha-mos
chegado há pouco tempo. O homem com ar surpreendido ousa perguntar:- E quando
chegaram não estava aqui ninguém?
Sempre impávido enquanto nós estamos "absorvidos"
a folhear os livros diz o Quim: - sim, estava aí um grande grupo de miúdos, mas
foram-se embora num autocarro. Deve ter havido alguma zanga entre os adultos,
pois estavam todos zangados e só diziam: "Isto não fica assim. Isto não
fica assim. O ministro há-de saber. O ministro há-de saber!”.
7 - O QUIM E O ZÉ DA GAITA…
QUANDO O MAR GALGOU A TERRA
Lembras-te, claro, do filme de Henrique Campos, "Quando
o Mar Galgou a Terra", passado nos Açores, não é?
É uma história de gente do mar que enfrenta as ondas do mar
e da vida, com a coragem própria dos "Heróis do Mar". Bravo Povo,
Nação Valente!
Mas essa história já tu deves conhecer, ou não fosses também
tu um dos muitos heróis deste cantinho à beira-mar plantado, como diria o
Zarolho.
A diferença com a de Henrique Campos, é que se trata de uma
história verdadeira, com todo o seu cortejo de alegrias e tristezas, sangue e
lágrimas. Lá vai.
Depois de uma noite passada numa quinta na Áustria, chegamos
de novo a Rieka, onde tudo estava na mesma. Nem o campismo tinha mudado de
sítio.
Um dia para descansar, matar saudades, cavaquear um pouco
com as pessoas conhecidas do campismo e mesmo alguns campistas que voltámos a
encontrar.
Mas as moças são giras e simpáticas e os moços vão-se
aproximando cada vez mais da tenda.
Lá dentro, os velhotes jogam ao dominó. (O Quim gosta muito
de jogar dominó belga e a Margrith também). Eu, adoro.
Cá fora, o ambiente aquece e quando começamos a prestar
atenção, só se houve falar alemão. Até as nossas, que sabem umas coisitas de
"Schniffershnaff" por aprenderem com a mãe e para agradar aos
Telefunken debitam umas aldrabices que os alemães não pescam nem de longe, mas
riem que nem uns perdidos. Gargalhadas mesmo à Teuton, de fazer abanar as
barracas.
E o Quim levanta-se bruscamente, pega no rolo de papel
higiénico, vem à porta da barraca e grita em francês com ar ameaçador
exibindo o rolo:- vocês querem o mesmo tratamento do ano passado?
Os alemães olham para ele
com ar assustado, e por mais que o Quim quisesse fazer-se compreender dizendo
que era a brincar, o certo é que em poucos minutos, agora um, depois outro,
piraram-se todos e nós depois de muito rir, pudemos continuar a jogar
tranquilamente.
No dia seguinte, o programa previa praia de manhã e praia à
tarde. Que bom!
Antes do almoço, o Quim e o Zé, vão fazer uma visita de
inspeção, para tentar topar um bom sítio para pescar. Começamos por tentar localizar
os outros pescadores. Não há. Mas que raio? Não se vê uma única cana de pesca
erguida à beira-mar? Estranho!
À medida que nos afastamos da praia, lá se vai vendo um ou
outro pescador, mas nenhum deles pesca com cana. Observamos aquilo e não há
dúvida, eles pescam mesmo. Mas como? Seguram o fio e limitam-se a isso
esperando que o peixe morda. Mas como é que lançam a linha?
É muito simples. Trata-se
de uma forma de pesca típica do país, em que não usam canas para lançar nem
para apanhar o peixe. Lançam a chumbada simplesmente ganhando balanço com um
movimento de moinho. Como se estivessem a arremessar uma funda. Quando acham
que o chumbo tem balanço suficiente, largam o fio e a chumbada lá vai cair no
sítio escolhido.
Entretanto, viam-se passar imensos cardumes bem pertinho de
nós, sem se assustarem, como se não estivesse-mos ali. Espetáculo lindo, como
nunca tinha-mos visto. Agora passava um cardume de peixes todos amarelos.
Depois passava outro de peixes azuis. Depois vermelhos, etc.
O mestre, faz uma exibição de filosofia piscatória e explica
ao aprendiz: - ó pá não te iludas. Eles são daqui, devem saber o que fazem.
Observemos primeiro.
E de facto, de tempos a tempos, lá havia um que puxava a sua
linha e por vezes um peixito a tentar pisgar-se do anzol.
No dia seguinte ao cantar do galo, aí vão eles com uma lata
de minhocas compradas na véspera, para o sítio combinado. Ninguém à vista.
- Vês Quim? Aquilo não eram pescadores. Se o fossem, já cá
estavam, como nós.
E vai um lançamento, e nada. E vai outro lançamento, e nada.
E mais outro, e ainda nada.
- Porra Quim, ou este peixe é parvo ou somos nós. Agora
percebo porque é que os tipos não estão cá. Ontem, não devem ter pescado nada.
Se tivesse-mos um barco... Isso sim. Aí enchia-mos o barco de peixe.
O Quim olha com aquela cara
séria de quem resolve todos os problemas do mundo, e remata:- E onde está o
problema? Não tens carta de navegação internacional? Alugamos um barco! -Boa,
Quim. Essa é mesmo uma boa ideia.
E aí vão os dois palermas ao porto, à procura de um barco
para alugar. Mas aquilo não é a Suíça, nem a França. É um país pobre e
comunista onde não existem essas extravagâncias de luxos capitalistas.
Mas conseguimos contactar um pescador, que está disposto a
alugar-nos o barco dele, pequeno, com um motor de dez cavalos. Ótimo. Chega
perfeitamente.
Combina-se o aluguer para o
dia seguinte, cedo, paga-se já e o pescador só tem que lá estar, para nos
deixarem sair do porto. Até nos mostra por gestos, a melhor zona para pescar.
Canta o galo e aí vão eles. O homem, é sério. Está lá e vai
ficar até nós regressarmos, ao meio-dia.
O mar parecia um mar de óleo. Lisinho sem uma vaga. Melhor,
não podia ser, e rumo ao largo.
Paramos a umas centenas de metros da costa e vá de dar banho
à minhoca, caladinhos, com os olhos fitos na água. Sacanas dos peixes. Não é
que eles andam em cardumes, também ali, à volta do barco e não há um sacana que
engrace com a minhoca? - Quim, ainda estamos muito perto da costa. Vamos um
pouco mais longe.
De repente, começa a avistar-se aquilo que parece ser uma
ilhota. E era. Só pedra, sem um ramo. - Aqui, deve ser bom. Está longe da
costa, é tranquilo, os peixes não nos veem e podemos fazer lançamentos bem
longe.
O Quim salta primeiro e amarra o barco a uma pedra, já que
não há mais nada. O barco fica na água, já que é demasiado pesado para o
arrastar para a ilha, que não tem areia. Apenas pedra. O Quim puxa o barco para
si e o mestre salta da proa para a ilha. E pimba, a pedra tinha musgo, o mestre
escorrega e foi um valente bate-cu que quase ia comprometendo a pescaria com as
dores sentidas. Bom, agora é que vai ser. Vamos a isto.
- Zé, tenho peixe, tenho peixe e deve ser matulão pelos
esticões que dá.
- Puxa, puxa com jeito. Não partas a cana, nem percas o
chumbo.
O Zé pega no camaroeiro e corre para o Quim para o ajudar a
sacar o tubarão da água. O camaroeiro, ia rompendo a rede com o peso! Era do
tamanho de uma sardinha. Mas bonito, uma cor linda.
O Quim finca os olhos no horizonte e diz: - que raio é
aquilo lá ao fundo? Parece um iceberg! - Se calhar é isso. Ainda bem que isto
não é o Titanic!
E o "iceberg", está agora mais perto. Afinal é uma
enorme bola de espuma branca, a avançar muito depressa e longe de nós. E a bola
agora distingue-se melhor. - Zé, aquilo é um barco, porra.
- Então, querias que fosse uma nave espacial? - Ó pá, mas
aquilo vem na nossa direção.
- Pois vem, porque vai em direção ao porto. Mas vai passar
longe de nós.
E o amigo Quim, não tira os olhos daquilo, mas mais por curiosidade. Nada há que recear e o Quim não é cagarolas. O Zé, esse, nada o demove do sentido na cana e que se lixe a bola de espuma, o barco ou lá o que é. Aquilo não vem sobre nós. Vê-se bem a trajetória. Vai entrar no porto. E entrou.
- Um quê? O Zé olha na direção que o Quim mostrava e, pernas
para que vos quero. Toca a pirar!
Pirar para onde? Estamos numa ilhota rasa. O instinto
fez-nos logo fugir para o ponto mais alto, talvez apenas um metro acima do
nível do mar.
E pimba! O sacana do Tsunami foi mesmo lá acima e pregou com
o Quim e com o Zé de pantanas e pirou-se dali. Uns segundos só e tudo voltou ao
normal.
08 - A PILINHA DA LENA
Isto passou-se sem eu presenciar. Foi o meu irmão quem me
contou, à noite. Não me lembro onde fui, mas não estava com eles nesse dia.
- O senhor tem uma pilinha pequenina para a minha montra?
(relógio em francês é montre)
Atores:
Zé Henriques & Quim Tatá
Ano:
MCMLXXIV
Data
precisa: 1 de Abril.
Local: Neuchâtel
País:
Suíça
Continente: Europa (e tal como hoje, fora da UE. Os francos são
como os cús,
quem os tem, tem
medo!)
Planeta: Terra (o terceiro a contar do Sol).
Argumento: Quim Tatá
Distribuição: Zé Henriques
Receção, assistência, reação (se houver): Hermenegildo Mendes!
É uma sexta-feira e são dez da manhã. Está um dia calmo, sem vento, mas com um nevoeiro de cortar à faca. Ao nível do lago e da cidade, já não há neve. A última foi-se há pouco tempo. Neuchâtel está situada no sopé da grande cordilheira do Jura a uma altitude de 550 metros. Mas a montanha que lhe serve de apoio, culmina a 1300 metros. Lá em cima, ainda há metros de neve para derreter durante os meses de Abril e Maio.
Em apenas onze ou doze quilómetros a estrada em zig-zag
leva-nos a quase 800 metros de desnível. Nesta época do ano, toda a gente ainda
anda com as correntes nas malas dos carros, pois basta sair-se de Neuchâtel em
direção do Jura e as correntes vão de certeza ser necessárias, quando não são
mesmo obrigatórias.
Mas há mesmo malucos e um
deles, já vais ver a "suite".
São dez horas da manhã daquela sexta-feira 1 de Abril de
1974, que ficou na história. E ainda bem, pois se assim não fosse, nenhum parvo
como eu te estava a contar esta farsa.
O embrulho já está na mala do carro, o Zé já se está a
sentar para partir e vem uma rapariga a correr, curiosamente uma filha do Quim
que estava a fazer uma aprendizagem de fotógrafa na nossa casa.
"Senhor Henriques,
Senhor Henriques, a Madame Henriques manda-me dizer que o meu pai está ao
telefone e quer falar urgentemente consigo". Ah, se os portáteis já
existissem, mas não!
O bom Henriques volta atrás, pega no telefone e ouve:
- Ó Zé, é pá tens mesmo que me desenrascar desta. A Lena já
me disse que tu tens um encontro na estação às dez, mas logo a seguir tens que
me fazer um grande favor.
O favor que te peço, foi-me pedido a mim, mas como sabes,
hoje é sexta-feira e eu tenho que dobrar o "Boletim Oficial", que
acaba agora de ser impresso e é distribuído esta tarde.
O problema, o grande problema é que o nosso amigo Zé Rocha
meteu-se numa grande alhada. Foi a Chaumont sem levar as correntes. O carro
começou a guinar e foi parar a um barranco cheio de neve e claro, não consegue
tirar o carro de lá. Conseguiu ir até um café de onde me telefonou. Ele não
quer chamar ajuda da polícia, pois não quer ser multado por falta das
correntes. Eu já lhe disse que não podia lá ir esta manhã, mas que te ia
telefonar a ti, etc. etc
Muito devagarinho, o carrito lá se aguenta só com duas
correntes e pneus de neve e lá vai subindo. Curiosamente, as correntes agarram
melhor à medida que a neve vai ficando mais alta.
E chego ao café, logo ali à beirinha da estrada. Só que de
Rocha, nem sombras. Estava mesmo um frio de rachar e decido não sair dali
enquanto o parvo do Zé Rocha não chegar. Ele é que tem de vir ter ao café e não
eu andar à procura dele, sem saber o sítio exato onde está o carro dele
empanado no gelo.
O grande sacana do Quim Tatá tinha telefonado ao Rocha a dizer-lhe o mesmo que me disse a mim.
Mas a Margrith, sabe nadar e bem. Ela toda, é uma boia que
não se afunda! O Quim faz "a prancha", a Margrith pega-lhe nos dedos
e vai recuando para o Quim dar umas sapatadas na água. Ele está pronto para as
Olím...piadas.
Voltam a sentar-se connosco na areia, a Margrith olha para
as mãos do Quim e exclama, pensando tratar-se de uma das partidas dele: - "Onde
está a tua aliança"?
O Quim olha para as mãos
e... nada. A aliança rolava na areia alegremente no fundo do mar, contente de
se ter visto livre do Quim.
À noite, já em casa, digo eu a brincar: -"Amanhã
levantamo-nos cedo e vamos aproveitar para, com a maré vazia, tentar encontrar
a aliança. Todos rimos e foi aí que ele nos contou esta que vais gramar, gostes
ou não!
O Quim sempre espertalhão, leva sem ninguém saber, um naco
de pão no bolso que vai mordiscando enquanto corre.
Engasga-se, para de correr, apoia-se numa árvore e um colega
fica uns segundos com ele, antes que o sargento se aperceba e se chateie.
O Quim conta ao amigo que vinha a comer e se engasgou,
enquanto ambos desatam a rir que nem uns perdidos.
O engasgamento misturado com a galhofa, complica ainda mais
as coisas e o Quim começa a ficar muito vermelho.
O colega assusta-se e dá-lhe uma grande palmada nas costas
numa tentativa de o ajudar a desengasgar, enquanto o pelotão vai desaparecendo,
e a palmada fez efeito.
Entre risos e lágrimas, o Quim sente uma coisa dura a
escorregar-lhe pela goela abaixo.
Que raio, o pão não era assim tão duro! Passa a língua pelos
dentes e, tragédia. As risadas deram lugar ao pânico.
E esta? A língua não
encontra o dente de ouro que ele tinha mandado pôr semanas antes e lhe tinha
custado um dinheirão. Só encontrou um buraco aflitivamente vazio!
O resto, adivinhas tu. O pobre Quim foi condenado durante
uns dias a ter que fazer greve de sanitas e apenas "obrar" fora da
caserna, longe de todos, para poder bem remexer a merda, que apesar de ser a
sua, não deixava de meter nojo.
11 - LE FROMAGE ET LE POISSON
D’AVRIL
Ele mora num primeiro andar, mesmo por cima da dependência
dos correios da zona. É o largo principal do bairro, entalado entre a igreja
protestante e um grande centro comercial. Ele distrai-se a observar toda aquela
azáfama, pois o sítio é muito movimentado.
Amanhã é o dia do Quim: 1 de Abril e ele está à rasca. Ainda
não tem programa de partida a pregar à malta, mas não por muito tempo.
Naquele cérebro
maquiavélico, germina uma ideia que vai resultar em cheio.
Aguarda que o largo esteja vazio, vai à varanda buscar uma
mesa de desmontar estilo campismo, passa pela cozinha, abre o frigorífico e verifica
se tem todos os ingredientes de que precisa. E tem!
Saca do frigorífico um bom
naco de queijo que a pobre Margrith tinha comprado no supermercado em frente,
corta-o em pedacinhos pequenos, espeta-lhes um palito em cada pedaço e já está
a primeira fase concluída. De notar que se trata de queijo Emmenthal, aquele
com muitos buracos, portanto menos pesado do que os outros!
Numa folha de cartolina
branca, escreve mais ou menos isto:
"Você sabia que são necessários doze litros de leite
para fazer um quilo de queijo?
Descubra como fazer um quilo deste saboroso queijo, em casa,
com apenas dois litros de leite. Prove e veja se gosta.
Às dez horas, estará neste local o Dr. (tal e tal), que
explicará o processo.
Serão distribuídos gratuitamente, um quilo de queijo às primeiras cinquenta pessoas presentes.
Ainda de noite, o sacana do Quim, sem ser visto, coloca a mesa no outro lado do largo para bem poder partir o coco, a observar o espetáculo da janela.
O dia nasce, são oito da manhã, o supermercado abre, os
sinos dão cabo das orelhas a chamar os fieis, e o bom do Quim goza que nem um
preto.
Passa um, passa outro, uns reparam na mesa bem decorada com
toalha, uma travessa de pedacinhos de queijo com um palito espetado, e um
cestinho de verga com pedacinhos de pão. Aproximam-se e depois de terem lido o
letreiro, não resistem.
Vai um pedacinho de queijo
com um pedacinho de pão. Depois, chega outro. E mais outro e ainda outro, e
como as dez horas se vão aproximando, o grupo começa a ficar cada vez mais
perto da mesa, para mostrar que tinham sido os primeiros a chegar.
O Dr. Tal e Tal, está a chegar. Os suíços são pontuais. E
quando o parvo do sino da igreja badala as dez, o Dr. Tal e Tal atravessa
solenemente ao compasso das badaladas, envergando uma bata branca e erguendo um
grande peixe que entretanto tinha recortado em cartão e revestido de papel de
alumínio.
À janela, a malta dele (numerosa) que tinha sido avisada da
farsa, cantava em coro: "Poisson d'avril, Poisson d'avril".
Os parolos, enquanto alguns aplaudiam o Quim pela
originalidade da farsa, outros achavam menos graça por não levarem o quilo de
queijo de graça.
12 - AS FILHAS DA PUTA DAS CRIANCINHAS
Havia uma explosão de "crianças prodígio" a quererem
fazer carreira no espetáculo. Deves lembrar-te bem dessa época. Quem já
esqueceu o Rouxinol Andaluz, o Joselito com a sua Campanera, O Baby Mistin que
enchia o Coliseu a tocar a Marcha Turca em xilofone e de olhos vendados, e
sobretudo o Pierino Gamba que com onze anos apenas, veio dirigir a Orquestra
Sinfónica Nacional do Teatro São Carlos. Entre nós, também havia pretendentes à
celebridade.
A miúda tinha muito talento e uma facilidade extraordinária
para comunicar com o público e o fazer vibrar com as suas canções, cópias de
grandes êxitos da rádio daquela época. Uma canção que era sempre um grande
sucesso da miúda, era "Será que eu sou feia?".
Eu adorava aquela miúda e simpatizava muito com o pai,
sempre presente, muito agradável e muito educado.
Em contrapartida havia um grandessíssimo chato, que era
eletricista de teatro, que tinha dois filhos, um rapaz e uma rapariga e que
teve a triste ideia de querer que os miúdos também fossem vedetas. Só que os
coitados dos putos, não tinham mesmo jeito nenhum, nem para cantar nem para
dançar. Ainda por cima, o parvo do pai, não encontrou nada de mais inteligente
do que criar um número em que os pobres miúdos vestidos à 1900, cantavam "Teodoro,
não vás ao sonoro"!
Depois do grande êxito da
Vitória Maria, aqueles dois miúdos metiam dó. O número deles era ridículo e o
público só achava graça por eles serem crianças de uns nove ou dez anos.
O locutor de serviço era um grande amigo meu. Chamava-se
Francisco Armando e era um grande brincalhão.
Os putos com aquela indumentária de fraque e cartola,
parecem ainda mais desajeitados.
E o Chico Armando volta para os bastidores onde eu estava
sempre com o chato do pai das crianças prodígio a meu lado, e diz sem saber que
aquele era o pai dos putos: -Têm muita graça as filhas da puta das crianças.
13 - ENCORE UN POISSON D’AVRIL
Era um playboy vaidoso e
arrogante que contrastava imenso com a simplicidade e o saber gráfico do pai.
Os empregados incluindo o Quim, não gostavam nada dele.
O Zé Rocha, era um
português que já lá estava quando eu cheguei à Suíça, que era vendedor na maior
garagem de Neuchâtel, agente oficial para o cantão da marca Ford.
Apesar de não gostar do
patrão e talvez por isso, o Quim que não tinha complexos de nenhuma espécie, e não
hesitou em pregar-lhe uma partida, quanto a mim, das melhores dele.
Eu fui apenas o confidente,
pois também não gostava nada do patrão dele. O Tatá agora que já não me incluía
no rol das suas vítimas, contava-me os seus projetos e este em particular, eu
apoiei.
O Zé Rocha, representava a Ford. Mas o sacana do Tatá
telefona-lhe e diz:
- Zé, anda cá depressa e
traz uma boa documentação de carrinhas novas, porque o parvo do Messeiller
(nome do patrão) quer comprar um novo furgão para as entregas. Mas tu sabes que
ele tem massa e só compra Mercedes. Tens que o convencer que a Ford é tão boa
como a Mercedes e muito mais barata. Mas tens que vir já, porque logo à tarde
vem cá o Martin (que era amigo do pai e representante da Mercedes).
Ao patrão, o sempre sacana do Tatá, diz:
- Vem aí o Sr. José Rocha,
mandado pelo patrão para falar com o Sr. Messeiller, não percebi bem o que ele
quer, mas acho que eles querem mandar imprimir com urgência uma série de novos
catálogos de utilitários Ford.
E pronto, um a afiar a moca
para vender uma carrinha nova e o outro já de moca afiada para uma encomenda
choruda de novos catálogos. Eu não estava no escritório para te poder relatar a
cena. O Quim, também não. Mas não tens dificuldade de imaginar um diálogo entre
cego e surdo, que aquilo deve ter sido, até se aperceberem tanto um como o
outro, que tinham caído na esparrela do Tatá.
O certo é que nem o patrão do Quim, nem o Rocha apreciaram a
farsa. Tanto mais que eles mal se conheciam.
14 - JOSÉ CASTELO BRANCO
Tudo correu bem para todos, menos para aquela maluca
depravada chamada José Castelo Branco.
Entrevistado, depois de o Victor-Hugo se ter mostrado
descontente e lhe ter dito que ele não tinha jeito nenhum para o circo, ele (ou
ela) disse ao repórter do Correio da Manhã:
- Não quero mais nada com aquele bruto do Cardinal, que
apenas sabe lidar com animais. Então não é que aquele brutamontes se dirige a
mim, nestes termos impróprios: - Fora daqui, seu grande paneleiro!
15 - DON CAMILO I
O Camilo diz logo que serve bem, nós não somos difíceis, só
não queremos dormir na rua.
E o homem insiste que não é um quarto para alugar, que só
tem um divã para uma pessoa. E eu insisto também para ele nos alugar aquele
cubículo, que para nós serve perfeitamente. E como eu falo bem francês, explico
ao homem que nós somos mesmo muito amigos, que vivemos na mesma casa, que
dormimos no mesmo quarto e que...
O homem interrompe-me e com toda a naturalidade levanta-se,
pega na chave do quarto, põe-na em cima da mesa e diz pondo-me afetuosamente a
mão no ombro: - "não se preocupem amigos, eu já percebi tudo. Tenham uma
boa noite."!
16 - POIS É A GENTE SUJEITA-SE
A cidade é feia e não tem
atrativos nenhuns, salvo para os amantes da neve e do gelo, o que estava muito
longe de ser o meu caso. É a maior cidade do Jura e situa-se a 1300 metros de
altitude. Não tem um lago nem um rio, e o inverno dura seis meses. Mas o Zé que
já não era da gaita mas da "Bronica", só saiu de lá, quando rebentou
a Bronca! Que bronca? Já vais ver.
A empresa empregava mais de novecentas pessoas. Todas elas
ou quase, a fabricar uma peçazinha minúscula, que graças a uma patente mundial,
equipava a quase totalidade dos relógios de alta gama. A peça, chamava-se
"Incabloc".
Tinha-mos um departamento de publicidade e foi por essa
razão que eu para lá fui trabalhar.
Só que depois de ter assinado um contrato por cinco anos e
começar a conhecer melhor a minha atividade, me apercebi que aquilo não
correspondia em nada às minhas ambições, que eram grandes na época.
Eu sonhava com a publicidade universal e ali só existia a
publicidade específica, sempre em torno da tal peça, o "Incabloc".
Para mais, eu não gostava de La Chaux-de-Fonds.
Mas não era de todo mau como atividade, e permitiu-me
alargar os meus conhecimentos no campo da fotografia de relojoaria, altamente
especializada. Para além disso, eu era o faz tudo fotograficamente
falando, da casa.
No fundo, a publicidade era o que menos me ocupava.
Reportagens, eram a minha principal atividade. Também foi bom e aprendi muito
com isso.
Durante esse período, casei
e tive uma filha.
Pronto, já viste por alto,
qual era o panorama da minha atividade na firma, e a situação de condicionado
em que me encontrava a viver naquele frigorífico, com Neuchâtel a apenas 22 km
e quase oitocentos metros mais abaixo. Vais perceber melhor o resultado da
Bronca.
Um dia, sou chamado já no
fim da tarde, ao gabinete do meu diretor, um tipo de quem nunca gostei e que me
pagava na mesma moeda. Um ditador arrogante que passava o tempo a berrar e que
coçava o cú enquanto dava ordens à sua secretária. Só que eu não o podia
ignorar, pois ele era o diretor do meu departamento. Portanto, tinha que o
gramar.
Entro no gabinete, dou as boas tardes e como resposta e sem
sequer levantar os olhos, o sacana diz-me:
- Então o que é isso de
fotografar mulheres nuas e andar a vender as fotos aqui na casa?
Imagina-te no meu lugar a olhar para aquele marreco
arrogante que eu detestava, sentado com a cabeça baixa sobre o que estava a
escrever, enquanto eu de pé o dominava inteiramente. Só o facto da enormidade
da acusação, me fez travar a vontade que tive de desfazer aquelas trombas.
Apenas te digo como finalizou:- Senhor Quaile, em face da
acusação que me faz, dou-lhe apenas 24 horas para que o senhor faça circular na
fábrica um documento que me iliba dessa acusação, e me peça desculpa em nome da
direção.
Sem esperar qualquer outra
reação, bati com a porta e fui para casa. Imaginas em que estado. Falei com a
minha mulher e com os meus sogros e isso ajudou a acalmar-me mais um pouco e a
serenar-me para o dia seguinte. Diretor ou não, eu sentia-me forte para
enfrentar o animal. Já tinha enfrentado touros, em Portugal!
E às seis da tarde tal como tinha anunciado na véspera, o
Henriques sem mesmo esperar o sinal para poder entrar, abre a porta, na
esperança de que lá estivesse mais algum diretor. Mas o bicho estava só.
Sempre sem levantar a cabeça diz:- Pensava que isto fosse um
assunto arrumado. Se não foi você, não foi. Não tem com que se preocupar.
- Se amanhã à mesma hora, o senhor mantiver essa atitude,
como se isto fosse uma repreensão a um miúdo de escola, eu irei daqui
direitinho à polícia apresentar queixa contra si por difamação.
E embora ele já gaguejasse dizendo que não fora ele que me
tinha acusado, que tudo isto deveria ser um "mal-entendu", e que eu
estava a fazer uma tempestade num copo de água, etc., etc., eu voltei a bater
com a porta e na manhã seguinte fui chamado à tesouraria, onde me entregaram o
produto das minhas exigências.
A saber: 6.000 francos líquidos, o equivalente a três meses
do salário que eu tinha na época, mais um documento atestando a rutura amigável
do contrato que ainda deveria durar mais dois anos, um certificado de bons e
leais serviços, uma recomendação da minha capacidade profissional, da minha
integridade moral e outras balelas, que no próprio dia à tarde, já estava a
mostrar ao chefe de pessoal da empresa, que iria ser o meu paraíso durante nove
anos, e que me ajudou a instalar-me por conta própria, emprestando-me inclusive
uma considerável soma de 50.000 francos, que seriam pagos com trabalhos que a
firma me confiasse no futuro!
17 - De um "Olho à
Belenenses" para outro "Olho à Belenenses".
Na Veiga, não houve aula das 8 às 9. Mas haveria a das 10 às
11. Ainda por cima: Religião e Moral. Que bom, o Zé apesar de se estar nas
tintas para a religião, gostava da aula de Moral. O prof era um jovem padre,
bonitão e maricão que gostava da turma e a turma gostava dele. Na aula,
falava-se de tudo, menos da igreja. Na sala, havia um projetor de slides e o Zé
estava no paraíso, pois era ele que manobrava o aparelho. O padre até deixava
fumar na aula e falava de sexo, cinema, música e tudo aquilo que a malta
gostava de ouvir. O Peralta e o Pais, devem lembrar-se dele. Era o Padre
Gamboa. Portanto, nada de faltar à aula de Moral. Era sagrado.
Na Veiga, havia um ponto dos maiores que já vi. Chamava-se
Amílcar, mas era o "Fígaro" para todos. Era mesmo um grande tarado e
sem medo de nada nem de ninguém. Era um brincalhão da pior espécie e a alcunha
ficou-lhe, por ele ter uma voz muito potente, a atirar para o baixo.
Por exemplo, pedia para ir à casa de banho. Tinha que atravessar o pátio porque as cagadeiras encontravam-se ao fundo. No regresso, ao atravessar de novo o pátio, ouvia-se no meio daquele silêncio escolar, uma voz bem timbrada em toda a sua potência: "Echo un barbiere...di qualitá. Di qualitá". Todos riam e até alguns professores que sabiam que era ele, riam também. Era um caso.
Era muito meu amigo e
também me lixou com uma alcunha, que ainda hoje tenho e que há quem me chame,
na brincadeira. Como ele sabia que eu andava numa escola de toureio, quando me
via, entoava sempre à maneira de "Carmen" de Bizet: "Olé El
Colhudo, Toreeeeero"!
Portanto, tinha-mos uma horita e decidimos prepararmo-nos
para a aula das 10. Bairro Alto com eles, apenas para ver as miúdas e fazer
sala, até a "avó" correr connosco por só sermos mirones.
Ia-mos por uma rua estreita e mal iluminada e passamos
diante de uma tasca, de onde saem a correr dois ou três mariolas da nossa
idade. Atrás deles, sai a correr o taberneiro com uma vassoura na mão a berrar:
- "Anda cá filho da puta que eu parto-te os cornos".
Nós, sem perceber o que se estava a passar, paramos em
frente da taberna, no momento em que um grandalhão sai à rua, olha para mim e
prega-me uma valente lapada com toda a força, em cheio nos olhos, pensando que
eu era um dos mariolas.
Juro-te que vi mesmo as estrelas. Não as contei nem sei de
que cor eram, mas lá que as vi, vi mesmo.
O Zé não via nada, atordoado com a chapada do outro matulão.
Mas o Fígaro que também era matulão, não tinha medo de nenhum daqueles dois
rufias. Só que eu nem sequer podia fugir.
Então, à boa maneira do Gildo, germinamos um plano. E uns
dias depois, quando o Zé já tinha quase recuperado, voltámos lá à tasca, para
nos entender-mos com os dois sacanas. Só que estavam lá mais dois ou três mal-encarados
e podia-mos levar uma sova daquelas bestas. Mas a vingança do Fígaro ia ser
terrível.
Voltamos à tasca e cá da rua, gritamos. Seus filhos da puta,
seus paneleiros, maricas de merda e tudo o mais que podes imaginar.
Os clientes boquiabertos, ficaram sentados. Mas o filho da
puta do taberneiro que também era lá de chima, está por detrás do balcão, e
antes que ele dê a volta para sair, voa a primeira tíbia que lhe acerta no
peito. Um dos outros, o que me deu a chapada, levanta-se e voa a segunda tíbia
ao seu encontro. Só que o sacana desvia-se e a tíbia passa-lhe ao lado.
Foi bater em cheio na
montra frigorífica do balcão. Pelo estardalhaço que fez, o osso deve ter
aterrado dentro da montra!
Pernas para que vos quero. Durante muito tempo nem passámos lá perto. Nunca
chegámos a saber se o osso chegou a magoar o brutamontes do bimbo.
18 - O CISNE DO PERRENOUD
Tinha um amigo pescador,
que tal como o meu tio, o original Georges Perrenoud, também se chamava
Perrenoud. Era um espetáculo de pescador. Vi-o chegar ao porto com alguns dos
maiores peixes que se podem apanhar no lago de Neuchâtel. O record cabe a uma
mulher que pescou a partir do bordo, um siluro (peixe-gato), de oitenta e
quatro quilos. Está embalsamado no museu de História Natural de Neuchâtel.
Naquele sábado, eu não
tinha ido pescar. Mas no fim do dia, era obrigatório dar um giro até ao porto
para assistir às "rentrées" e ver se valeria a pena ir no dia
seguinte (Domingo) às cinco da manhã.
É quase noite e o meu amigo
Perrenoud ainda não regressou ao porto. O Zé e mais dois ou três
"mordus" da pesca, não arredam pé dali. Se o Perrenoud ainda não
voltou, de certeza que vale a pena esperar por ele.
As luzes já começaram a
acender-se e do molhe, distingue-se a silhueta do barco do Perrenoud.
Avançamos pelo pontão ao encontro dele e coisa curiosa, ele
já tinha coberto o barco com a respetiva lona e apenas nos mostra no fundo do
balde, dois ou três peixitos sem importância.
Habitualmente, ele baba-se
todo quando exibe alguma presa de realce. Hoje, está cabisbaixo e diz que
amanhã não vem. A pesca está uma merda, diz ele.
Os outros vão-se embora e o meu amigo Perrenoud faz-me sinal
para ficar mais um pouco. Ali vejo que há malandrice no ar.
- Não confio nestes tipos. Anda cá ver o que eu apanhei.
Vais ajudar-me a tirá-lo do barco e vais cair de cú quando vires a peça que é.
Porque pensas que eu só voltei ao porto de noite?
Perante o meu espanto, ele diz-me que sabe bem que aquilo é
proibido.
- É pá o que é que eu havia de fazer? Este sacana não me
queria gamar a truta que eu tentava trazer para o barco? Ou será que não havia
truta e o cisne só tentava apanhar o isco pensando que era um peixe?
Mas foi apanhado por uma pata, sem conseguir libertar-se. A
pouco e pouco e à medida que ele estava mais cansado, consegui ao fim de meia
hora traze-lo até ao bordo do barco. Ainda tentei libertá-lo. Mas o sacana mesmo
cansado, impunha respeito e queria morder-me. Saco do remo e zás. Uma boa
traulitada no pescoço e acabou-se o cisne. Só espero que ninguém me tenha
observado com binóculos.
Vai ser uma tachada de
gritos. Amanhã, vais lá a casa com a tua mulher e filha jantar connosco.
E no dia seguinte lá foram
o Zé a mulher e a filha, cheios de galga, com apenas uma interrogação: será que
é bom? É que nunca comemos cisne!
Ao chegarmos, o amigo
Perrenoud abre a porta e levanta os braços como faz o Papa em Roma: - Entrem, entrem
que não ficam sem jantar. Mas o filho da puta do cisne, esteve dez horas ao
lume, deu-me cabo da panela e continua duro que nem uma pedra!
19 - TOMA LÁ, PARA NÃO ME PUXARES PELA LÍNGUA
O problema do cabo que se partiu e nos obrigou a fazer alta
em Schaffhausen, gerou mais
complicações, mesmo depois de reparado.
Rumo ao norte em direção da Holanda, a Vespa teimou sempre
durante toda a viagem, em não fazer mais do que sessenta quilómetros sem parar.
Mas parava mesmo. Tinha-mos que a deitar, para que a gasolina passasse de um
compartimento do depósito para o outro. Com o ar que entrava nos tubos e o lixo
que entupia o carburador, tinha-mos sempre que esperar uns minutos para que o
motor voltasse a funcionar e a viagem prosseguisse.
Chegamos a Amesterdão e
claro, tivemos que ir ver as montras. Daquelas com luzinhas vermelhinhas
e...Tás a ver, não tás?
Mas apesar do interesse que tinha-mos em ver as montras, e
apesar da juventude, os muitos quilómetros e o esforço de deitar e levantar a
Vespa tantas vezes, começaram a empurrar-nos para a cama.
E uma vez mais, a despreocupação típica da juventude aliada
à também típica forma de "deixa-andar" bem lusitanas, fizeram o que
era de esperar. Não havia onde dormir. Os hotéis baratuchos estavam todos
cheios. Não éramos os únicos tesos em Amesterdão.
Um hotel de aspeto manhoso,
onde havia um quarto vazio e desta vez com uma cama de casal! Desta vez, não
passámos por maricas! O preço, era mais do que barato: quinze florins.
A Vespa bem em evidência mesmo em frente do hotel, com a
recomendação para o homenzito da receção ir dando uma olhadela e lá fomos para
o cortiço.
Três ou quatro andares...a butes. Chegados lá acima, bastou
empurrar a porta. Não estava fechada nem havia meio de o fazer. Não tinha
fecho!
Apenas uma lâmpada numa mesa-de-cabeceira. Uma toalha grande
de banho, mas apenas uma. Mas de banho, só a toalha. O resto estava tudo
avariado. Mas o cansaço era tal, que foi quase como chegar ao paraíso. Dormimos
que nem uns anjinhos.
Por volta das dez da manhã, descemos, pois havia ainda
muitas centenas de quilómetros para fazer. Pagamos os quinze florins e ia-mos a
sair, quando o rapaz da receção nos diz: - então, não tomam o pequeno-almoço?
O Camilo e eu dizemos que não, que vamos tomar o pequeno-almoço
no caminho.
O rapaz, espantado, olha-nos nos olhos e com um ar maldoso,
repete: vocês não querem mesmo aproveitar o pequeno-almoço? Está incluído no
preço do quarto!
O quê, vamos deixar fugir o pequeno-almoço que até já
está pago?
O rapaz sorri e indica-nos uma porta que dava para a sala de
refeições. E aí, ia-mos caindo de cú. Não havia ninguém na sala. Mas estava à
nossa espera uma grande mesa redonda, com quatro ou cinco géneros de pão fresco
e torrado. Uma tigela cheia de manteiga. Outra, cheia de açúcar. Outra, cheia
de doce de tomate (que eu adoro). Mais presunto, fiambre, vários tipos de
queijo, etc. etc.
E para cúmulo dos cúmulos, no centro da mesa estava uma
grande batata crua, com a bandeira suíça espetada na batata!
A bandeira, contrastava com a belíssima comida. Estava muito
sebenta e cheia de autógrafos dos muitos jovens suíços que por ali tinham
passado. Nem lhe mexemos. O rapaz era muito simpático e dava-lhe um jeitito,
tanto em francês como mariquices.
Ao despedirmo-nos agradecemos-lhe a chamada de atenção para
o grande pequeno-almoço, que até foi almoço e parte do jantar. Mas sobretudo a
atenção da bandeira suíça. E perguntámos: como é que soube que nós vinha-mos da
Suíça, se nós nem sequer depositámos os passaportes?
Vi a chapa de matrícula da
Vespa, diz o rapaz surpreendido. Porquê? Vocês não são suíços?
Como é que querias que
estes dois lusitanos ainda bem queimadinhos do último curso de praia da
universidade de Carcavelos, fossem suíços?
Não, amigo. Nós somos
portugueses!
O rapaz abre os olhos esbugalhados e pergunta: portugueses?
Isso é espanhol, não é?
Meio-feridos no nosso
patriotismo, dizemos que não, que Portugal é um país independente.
O rapaz não ouve mais nada. Dá meia volta e reaparece um ou
dois minutos depois, com uma bela bandeira portuguesa, novinha em folha, pede-nos
para a assinarmos e espetou-a na batata!
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